Deliberação nº 923/2016 – relativa ao acesso pelos solicitadores e agentes de execução aos dados pessoais do recibo de vencimento de executados

Ago 24, 2021 | Decisões CNPD

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1. A pretensão de acesso aos dados pessoais constantes de recibo de vencimento de trabalhadores objeto de processo de execução

A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) tem recebido pedidos de pronúncia de entidades públicas e privadas, na qualidade de entidades empregadoras, sobre a legitimidade de solicitadores e agentes de execução em aceder ao recibo de vencimento de trabalhadores e/ou a toda informação nele contida, quando estiver em causa a penhora de vencimentos.

Ante a generalizada persistência no acesso a recibos de vencimento, mesmo quando os solicitadores e agentes de execução já se encontram na posse da informação relativa ao vencimento líquido e ilíquido do trabalhador e a eventuais penhoras sobre o mesmo, disponibilizada pelas referidas entidades, é conveniente clarificar e divulgar o entendimento da CNPD sobre esta pretensão de acesso a dados pessoais. Assim, a CNPD delibera nos termos que a seguir se expõem.

2. Apreciação

A Comissão Nacional de Protecção de Dados é a autoridade nacional que tem como atribuição controlar e fiscalizar o cumprimento das disposições legais e regulamentares em matéria de proteção de dados pessoais – cf. artigo 22.º da Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, alterada pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto (Lei de Proteção de Dados Pessoais – LPDP).

O acesso pelos solicitadores e agentes de execução à informação constante de recibos de vencimento constitui um tratamento de dados pessoais, por ser uma operação sobre informação relativa a pessoas singulares identificadas, de acordo com o disposto no artigo 3.º, alíneas a) e b), da referida Lei.

No caso em análise, a comunicação dos dados aos solicitadores e agentes e execução implica um desvio de finalidade em relação àquela por que se pautou a recolha e conservação da informação pessoal – gestão da relação laboral e do cumprimento de obrigações da entidade empregadora. E, não obstante a legitimidade da finalidade agora visada – instrução do processo de execução, tendo em vista a penhora de vencimento –, importa apreciar se a mesma
não é incompatível com a finalidade originária, bem como se os dados a que se pretende aceder são também adequados, necessários e não excessivos à sua prossecução – cf. alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 5.º da LPDP.

Neste plano, reconhecendo-se não haver incompatibilidade de finalidades, porquanto se tem em vista a penhora do próprio vencimento, e sendo certo que a informação constante do vencimento é adequada à prossecução desta finalidade, por permitir o cálculo do valor a penhorar, importa ainda avaliar da necessidade e proporcionalidade do acesso ao dados constantes do recibo de vencimento do executado. Ora, fácil é de perceber que a necessidade de conhecer o vencimento do executado – reconhecida por lei, no artigo 779.º do Código do Processo Civil (CPC) –, não reclama o conhecimento de todos os elementos que integram o recibo de vencimento.

Com efeito, o recibo de vencimento do executado, para além de conter informação relativa ao vencimento, contém, ou pode conter, outro tipo de informações, como seja a quotização sindical, pagamentos de seguro e de pensão de alimentos, faltas ao serviço, cujo conhecimento não é indispensável para o cálculo do valor penhorável.

Por outro lado, esta informação enquadra-se no conceito de vida privada do trabalhador, pelo que, nos termos dos artigos 35.º, n.ºs 3 e 4, da Constituição da República Portuguesa e do artigo 7.º, n.º 1, da LPDP, merece a proteção jurídica reforçada reservada aos dados sensíveis. Assim, nos termos do n.º 2 do artigo 7.º desta lei, e considerando o contexto do tratamento, apenas poderá relevar, para fundamentar o acesso, disposição legal habilitadora do mesmo.

Ora, compulsada a legislação que regula o processo de execução, máxime o CPC, não se vislumbra disposição legal que preveja que o solicitador ou o agente de execução possa conhecer toda a informação pessoal contida no referido documento. Com efeito, quer as disposições legais relativas ao processo de execução, designadamente o artigo 749.º do CPC, quer as disposições gerais relativas à instrução do processo, também aplicáveis ao processo executivo, como sejam os
artigos 417.º e 418.º do CPC, não constituem suporte legal ao abrigo do qual o solicitador e agente de execução se possa escudar para instar a entidade empregadora a facultar-lhe o recibo de vencimento.

O artigo 749.º do CPC prevê o acesso dos agentes de execução a algumas bases de dados da responsabilidade de entidades públicas, no contexto de diligências prévias à penhora, elencando os dados objeto do mesmo. Ora, não só não consta do elenco desses dados o recibo de vencimento, nem tão-pouco os vários dados pessoais que este integra, como também não está em causa a consulta das bases de dados objeto de regulação neste artigo.

Por sua vez, o artigo 417.º do CPC, apesar de estatuir no seu n.º 1 o dever geral de colaboração com o Tribunal, prevê, no n.º 3, situações de recusa legítima quando em causa estiver a violação da integridade física ou moral das pessoas; a intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações; a violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou de segredo de Estado.

Esta norma não legitima, pois, o solicitador e o agente de execução a solicitar o acesso ao recibo de vencimento, tanto mais que é reconhecida à entidade empregadora a possibilidade de recusar colaborar com o tribunal, designadamente em caso de intromissão na vida privada e violação de sigilo profissional. Ademais, o incidente de recusa por violação do dever de sigilo tem de ser dirimido nos termos do Código de Processo Penal, conforme se refere no n.º 4 do artigo 417.º do CPC.

Por último, no artigo 418.º do CPC encontram-se previstas as situações de dispensa de confidencialidade, pelo juiz do processo, em despacho fundamentado, de informações que estejam na posse de serviços administrativos, como sejam a identificação, a residência, a profissão e a entidade empregadora ou que permitam o apuramento da situação patrimonial de alguma das partes em causa pendente, quando aquele as considere essenciais ao regular andamento do processo ou à justa composição do litígio. Conforme decorre claramente das disposições referidas, existe sempre necessidade de intervenção de autoridade judicial quando em causa está informação relativa à reserva da intimidade da vida privada, sujeita a sigilo profissional ou, ainda, que permita o apuramento da situação patrimonial.

Assim, admitindo que o solicitador ou o agente de execução tenha de verificar os limites da impenhorabilidade, ou seja, tenha de verificar qual o valor que pode ser descontado sobre o salário do executado, tal não justifica, nem pode justificar, o acesso ao recibo de vencimento do executado

Na verdade, se o que se pretende é a penhora do vencimento, então a informação bastante para tal é a relativa ao vencimento líquido e ilíquido do executado e penhora(s) que incidem sobre o mesmo.

Deste modo, sendo suficiente para se atingir a mesma finalidade o acesso a menos informação pessoal, não estando demonstrada à partida a necessidade de se conhecer a mesma informação apresentada no documento “recibo de vencimento”, até por estar assegurado pela lei um mecanismo processual adequado em caso de falsas declarações por parte da entidade empregadora, e, por outro lado, o acesso à informação constante do recibo de vencimento tem um excessivo impacto na vida privada dos executados, o acesso aos dados pessoais do recibo de vencimento viola o disposto no artigo 5.º, n.º 1, alínea c), da LPDP.

Neste sentido se pronunciou o juiz do 2.º juízo, 3.ª secção, dos Juízos de Execução de Lisboa, em 9 de julho de 2009, no âmbito do processo executivo 4693/08.2YYLSB, após instado para tal pelo solicitador e agente de execução nomeado nos autos.

Face a todo o exposto, conclui-se, clara e inequivocamente, pela inexistência de base legal a reconhecer legitimidade aos solicitadores e agentes de execução para aceder aos dados pessoais constantes de recibo de vencimento de trabalhadores que são parte em processos judiciais cíveis.

3. Conclusão

Com os fundamentos acima expostos, a CNPD delibera não ser de autorizar as entidades empregadoras a facultar aos solicitadores e agentes de execução os dados pessoais constantes do recibo de vencimento dos seus trabalhadores que sejam partes em processo judicial de natureza civil.

Lisboa, 31 de maio de 2016

Filipa Calvão (Presidente)